Uma história comum em uma cidade comum

Por Paloma C. Mamede - 24/01/2022


Imagem: Wassily Kandinsky Transverse Line 1923 @ domínio público

Em uma tarde remota em uma cidadezinha no interior, Leda ia enfim assumir o cargo novo, suas mãos estavam soando, sua voz meio rouca, sua pele corada, queimada e descascando. Leda pegou muito sol indo levar currículo em todos os cantos da Terra e o dia chegou. Era um mercadinho ali da esquina onde ela morou a vida toda, seu bisavô trabalhou lá, seu pai, seu irmão e até uns quatro ou cinco primos, com funções variadas, é claro.

Ela estava nervosa, teve vontade de chorar nesse dia, e teve muita vontade de rir, na verdade ela não parava de rir, segurava um pouco, respirava, soltava e ria sem parar. Leda dizia para si mesma que ela teve sorte na vida e que aquele dia deveria ser especial para todos, principalmente para ela mesma. Segurou o microfone, as mãos soavam, o microfone escorregava, mas Leda secava tudo com um lenço que ganhou do pai no dia da formatura enquanto soluçava com a conquista rara.

Começou: "Hoje a promoção tá boa, tá tudo bom, tá tudo bom. Tem peixe fresquinho, tem limão fresquinho, limão combina com tudo. Tá tudo bom, tá tudo bom!”. Os novos colegas caçoavam sem disfarçar, os clientes achavam estranho, exagerado. Leda não deixava se abalar, ia de um lado para o outro, inventava coisas engraçadas que combinavam com os preços e ria enquanto respirava fora do alcance do microfone.

Leda lembrava do pai entre risos, de como ele falava dos preços com carinho, sempre levando os clientes ao ponto chave da receita. Seu pai era um gastrônomo nato que nunca fez curso de nada e sabia de tudo, contudo o talento dele foi aplicado em convencimento de ofertas e temperos. Ela ria, pois lembrava de quando ia visitá-lo ao mercado antes de ir para a escola e sempre achava as piadinhas dele muito graciosas com a combinação deliciosa dos ingredientes.

Leda se formou em Marketing, sonhava em usar a genialidade do professor-pai que observou minuciosamente por 30 anos. Ele chegava em casa, sentava em silêncio, abria uma cerveja gelada e se afundava no sofá à noite inteira. Esperava Leda ir desejar boa noite, abraçava a menina em silêncio e fazia um gesto de coração com as mãos, pois já não tinha voz para expressar os seus sentimentos.

Assim, era o fim da noite, de dia, fazia o melhor café da manhã do mundo, levava Leda na parada para que fosse ao estágio, ou aos cursos ou à faculdade. Levou em todos os momentos que foi preciso. “Leda, não esqueça de ser melhor que o seu pai”. Ele falava isso todos os dias quando se despedia e ela subia no ônibus. Ela sofria, porque sabia que a mãe tinha se divorciado porque ela se sentia melhor que ele. 

Tudo passou, as dores passaram, até o amor quase passou com a morte, todavia o amor perdura e a dor retorna. Leda entre risos, deixou cair lágrimas e foi assim seu primeiro dia de trabalho. Ao final do dia, o chefe, que era o ex-chefe do seu pai, entregou-lhe a carta de demissão com um comentário presunçoso: achei que tivesse o mesmo talento que seu pai.

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