Sobre o Paraíso

Por Paloma C. Mamede - 25/01/2021


O adolescente - Michelangelo. Fonte: The State Hermitage Museum, 2018 / Ph. Vladimir Terebenin

Esses dias ouvindo o canto dos pássaros, estava pensando como é fácil em outras espécies ter um propósito ou saber exatamente o que fazer. Será que os passarinhos questionam o motivo de precisar voar ou se sentem frustrados por não ter o mesmo estilo de voo de outrem? Será que refletem sobre a afinação do canto, ou aprendem sem pretensão? 

Na natureza tudo parece medido, dividido, organizado, como se tudo fosse predestinado ou tudo fosse ajeitado até ser o que deve ser. Mas, a raça humana foge de tudo isso não é? Lembrei também um dia que estava no ônibus, indo para Taguatinga e um poeta entrou vendendo um livrinho que mais parecia um folheto. Este, carregava toda sua arte, seu coração e sua alma, ali naquelas páginas tão fáceis de serem folheadas, tão pequenas…

O homem não está destinado a um simples talento, estamos sempre perdidos e nosso modo de sobrevivência parece conter alguma falha, pois nem sempre vivemos do que queremos e quase nunca sabemos o que queremos.

Naquele dia, eu não podia ajudar aquele moço que se esforçava tanto pela sua crença de que a arte valia tudo. Então, eu disse para ele que também era poeta e parabenizei o seu trabalho e a sua coragem. Em troca, ele me deu um livrinho: Ser ou ter?

Aliás, é tudo sobre esse embate, não é mesmo? Somos ou temos, ou somos e temos, ou apenas somos e nada temos. Tudo fica por isso mesmo. Me veio logo ao pensamento, meu primeiro conto e como entrei nessa armadilha das letras. Eu tinha uns 13 anos, a professora pediu para que escrevêssemos uma história fictícia. Eu amava ler e achava que apenas deuses escreviam contos, era tão sublime, tão impossível, era uma das maravilhas que apenas escolhidos pelos céus tinham o direito de experimentar.

Comecei, fui gostando, costurando as letras, imaginando, pondo tudo uma linha após a outra, aquilo me fazia tão bem. Escrevi uma história boba, era sobre um anjo que salvava uma moça de um acidente. Contudo, ele não tinha permissão para isso e foi condenado a viver na Terra, impedido de vislumbrar o paraíso outra vez. Pois, a moça não devia viver. Ele tinha desrespeitado as leis do destino. O mais engraçado de tudo isso é que hoje percebo que o artista é como um anjo que é impedido de viver no céu. É completamente o oposto de ser um deus. 

Toda arte de certa forma exige que deixemos as harmonias de lado por um tempo, que venha o suspiro, a dor, o rasgo inteiro da pele, dos músculos, do corpo, até que sobre apenas o intangível. Nessa catarse, nasce a obra, seja esteticamente bonita ou não, seja verdadeira ou apenas um mimo feito todo de imaginação. Nada se cria sem cólera, é preciso escavar as indecências do espírito e descer ao inferno. 

De ardência em ardência, vamos criando o produto de algo sem resposta, fruto das fatalidades. Seria tão fácil se toda a arte humana fosse um rugir instintivo de um leão, fosse como a construção da colmeia, como o ninho das formigas, o crescimento das árvores. Não é. Parece que foge do natural e perde a serenidade. Todavia, reclama, incendeia as injustiças e incertezas do ente. Denuncia a própria inconsistência, maldade, atiça o caráter, busca apontar as feiuras incompreendidas da cobiça. Afinal, renunciar o paraíso é deixar de viver por um momento, sair do plano existencial, falar de tudo que é e não é, falar da mentira, porque a verdade é selada. É prender o ar, ser o outro, esmagar o ego e finalmente entender que cada espécie tem as suas penitências.

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