O Brasileiro tem fome de quê?

Por Paloma C. Mamede - 25/10/2021


Foto: A face da guerra - Salvador Dalí

Dia de segunda dose, terceira para alguns e até primeira para poucos. Antes da pandemia, o Brasileiro tinha sonho de quê? Já surgiu um daqueles mitos midiáticos que todo mundo quer ou já quis um carro, mas fora esses mitos o que será que o íntimo carrega? Criar, viajar, ter um negócio próprio? Qual a fome de cada um? E, fome, é uma coisa séria, quando se tem fome, não se sacia não. 

Chegando na fila enorme, havia dois senhores e um rapaz mais ou menos da minha idade conversando com ferocidade, era impossível não ouvir aqueles relatos da simplicidade humana. O rapaz estava com a máscara pela metade e os senhores já tinham passado a mão em todo canto do posto de saúde; depois no rosto e nos olhos.

O rapaz tinha os mesmos ideais daqueles anciãos rústicos e trabalhadores, discutiram primeiro sobre a pinga, assunto sério e delicado, depois dessa dose, ia demorar para poder tomar outra dose mais sagrada, né? Tá aí, começamos pela fome do álcool, logo eles chegaram em um consenso de que passariam o final de semana de reprimendas, mas na terça não iam mais postergar a tradição da pinga ao final do dia, afinal, “trabalha o dia todo, pra quê? Se não pode tomar uma cachaça em paz?”.

Foram discutindo o preço do gás, um deles até afirmou que fez um fogão à lenha em casa para economizar nesses dias tão miúdos em que o pobre se vira do jeito que dá. Falaram dos serviços de serventes, que tinha uns moços magrelos que só serviam para trabalhar em computador, que compravam uma marmita de gente de escritório e não sei como achavam que iam aguentar a pedreira da vida desse jeito. Aí adentraram na fome, fome de verdade mesmo. Todos foram levando uma palavra de efeito em cima da outra, até que o rapaz deu um salto e disse: “eu gosto de comer bem, mas como que compra um pedacinho de carne por 50 contos?”. Todos concordaram que o suor do servente não valia aquela carne de panela saindo do fogo feita de ouro e lambanças ao final de domingo.

Foi aí que um dos senhores disse que aquele tinha sido o trabalho que Deus deu para ele e que nunca tinha nem pisado numa escola. O outro senhor já estava sendo atendido e tomando a terceira dose. O rapaz ficou abismado e disse que não acreditava que o senhorzinho não sabia nem ler. Ele mostrou os documentos que estavam guardadinhos bem dobrados dentro do bolso dentro de uma sacola de mercado, “eu assino com o dedo, viu só?”. Silêncio, surpresa e tudo que é de se arrepiar. 

“Eu vim lá do meu nordeste, sem saber nem ler, pegando ônibus que nem sabia onde ia, ia pedindo ajuda pra qualquer um na rodoviária, o povo pensava que eu era ladrão, eu entregava os documento e eles mostrava o caminho e foi com o trabalho que Deus me deu que eu vim pra cá”. Logo após esse relato, comentaram que a fome bateu, mal esperavam para encontrar um prato de cuscuz ao chegar em casa. E, assim, tomaram a segunda e a terceira dose combinando a hora do trabalho. Nesse momento, um colega ao fundo perguntou se eles iam trabalhar depois da vacina e disse que isso era loucura, os dois balançaram a cabeça, riram baixinho e depois cabisbaixos lembraram do preço da fome e foram logo para casa almoçar às 10 da manhã com a esperança de ter a próxima comida depois do sol do servente.

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