As Araras São Azuis?

Por Paloma C. Mamede - 25/05/2020


Foto: Série INFRARUBRUM IR011 - Por João Campello

Dora levantou mais cedo que de costume, ia ser bom poder sentir a luz do sol na pele de novo, pena que ainda tinha medo de aspirar o ar fresco, e até mesmo de transitar pela cidade, ia ser um desafio com certeza, mas finalmente tudo estava voltando ao “normal”, ou pelo menos era isso que a sua inocente esperança martelava junto com as batidas de seu coração ansioso.

Montou a sua mochila gigante de acampamento, tinha comida para pelo menos 3 dias, saco de dormir, barraca, fósforo, lanterna, algumas peças de roupa, alguns livros, entre outras coisas. Dora estava orgulhosa de si mesma por ter tido a coragem de organizar toda essa jornada… Dessa vez, nada poderia impedi-la. “Nem ácido”, sorriu.

Olhou no espelho, ainda se sentia estranha com aquela máscara branca, ainda era difícil de respirar, mas era necessário. Ela sabia que o mundo havia mudado, talvez para sempre, lembrou também de levar um vidro de álcool na sua mochila, aproveitou e decidiu levar duas garrafas de cachaça e bastante água, ela definitivamente iria precisar disso. “Definitivamente”, falou franzindo a testa, com uma expressão de guerra que saltava pelos olhos.

“Vamos, Dora!”, sem medo, por favor. Saiu e pegou o ônibus antes que o sol aparecesse, como eu disse era muito cedo, no meio do caminho o sol começou a surgir um pouco tímido, porém intenso e revigorante. Dora também estava radiante, sentindo todo aquele calor e vigor do astro. Não durou muito, infelizmente, logo as preocupações se mostraram; estavam escondidas. Um homem passou entregando jornal para todos com a seguinte manchete “Fábrica de Máscaras : Protesto Termina em Incêndio”, Dora teve medo, olhou ao redor e percebeu que apenas cinco pessoas estavam de máscara naquele ônibus, ela logo entendeu que havia um protesto silencioso, pensou em tirar a sua, mas algo dentro de si a interrompeu, “é o que eu acredito”, arfou.

Observou pela janela vários tumultos ao longo do caminho, as pessoas estavam mesmo furiosas, bandeiras de abaixo a ditadura estavam expostas. Dora aceitou que a vida estava se transformando, não havia como voltar atrás, para ela a máscara era uma simbologia de “estamos juntos”, para outros era o artefato que indicava opressão.

Dora desceu na rodoviária, pegou o próximo ônibus que a levaria ao destino final, teve que ficar em pé, pois estava lotado. Ao final do ônibus quase encostada na porta, ouviu um cumprimento distante, olhou, era Jorge. “Não vai trabalhar hoje, Dora?”, Jorge era um colega de trabalho, ele estava sem máscara, aproximou-se dela. Ela disse que tinha assuntos de família para resolver, ele estava abatido, desejou boa sorte, e voltou para o lugar que estava antes, ao meio do ônibus.

Dora ficou entristecida, não sabia se a frieza do amigo era devido ao “artefato” ou se ele também havia mudado. Lembrou de tempos longínquos, se fosse ano passado com certeza os dois iriam se abraçar e tagarelar pelo resto da viagem. Tudo estava frio e distante. Enfim, chegou ao seu destino, desceu do ônibus, foi andando, saindo da cidade, indo em rumo às chácaras. Sua avó havia morrido há três anos, ela tinha uma chácara que acabou ficando abandonada, ninguém da família queria pisar naquele terreno. Todavia, Dora sentiu saudades do tempo que visitava a avó, do tempo que corria pelo gramado, pela horta, sem preocupação. Sua avó na época tinha araras azuis, ela não sabia se eram legalizadas, mas em seus pensamentos a imagem delas era frequente.

Ela não tinha a chave da casa, tudo estava abandonado, um deserto, parecia um bosque, a grama muito alta, tudo muito verde. Atravessou a cerca, se arranhando um pouco no arame farpado. Enfim, paz. Jogou a mochila no chão, deitou ali mesmo, não se importando com mais nada, agora só restaria as araras.

  • Compartilhe:
  • @