Apenas uma gripe qualquer

Por Paloma C. Mamede - 28/06/2021


Imagem: O sono - Salvador Dalí

Disseram que todo mundo deveria contrair ou que todos iriam, ninguém escaparia da experiência. Usaram também o famoso "Deus protege" e continuaram seguindo a vida comum. Afinal, era apenas uma gripe qualquer. Tem casos e casos. Nem todos se dariam ao luxo de trabalhar em casa, a maioria não teria esse privilégio. Mas, sabe como é, né? Há sempre um jeito de evitar alguns riscos, se proteger ao máximo. Porém, contudo, entretanto, todavia, disseram que a máscara era cárcere. Prisão! Rebelaram-se, ativaram as leis da liberdade de expressão.

"O homem é o lobo do homem, em guerra de todos contra todos". Mal sabia que todo esse discurso alcateíco cairia como um meteoro desgovernado na vidinha de Túlio. Ele, pobre coitado, tinha duas roupas para trabalhar e uma coleção de trapos. Tinha 4 filhos, 2 pequenos e 2 que já sabiam se virar. A esposa fazia uns bicos de faxina e ele trabalhava vendendo rifas de porta em porta. Rifa de celular, rifa de viagem, rifa de tudo. Era o único meio que tinha de sobrevivência, pois logo no início da pandemia uma rede de mercados de nome  conhecido se livrou de alguns gastos. Entre eles, tinha um número quase meio apagado lá na lista do faturamento,  riscaram sem pensar duas vezes, depois o RH identificou aquela série de algoritmos liberou o FGTS do dito cujo e até mais ver!

Túlio, pobre, Túlio! Comprou alguns aparelhos singulares com o uso daquele Fundo Trabalhista antes que gastasse tudo preenchendo os vazios da geladeira. Foi de porta em porta. Contraiu covid na primeira semana. Passou para a casa inteira. Todos melhoraram em um mês.  Voltou a trabalhar um pouco mais descuidado agora, já que era só uma gripe. Todos estavam bem.

Vendeu algumas rifas pela metade, teve mais prejuízo que lucro. Outras, foram todas vendidas com orgulho. Conseguiu pagar algumas contas atrasadas, não faltou comida naquele mês. Túlio decidiu então ir de porta em porta em outras cidades. Pegou ônibus dia e noite, persuadiu cada ser humano que encontrou em sua jornada. A rifa parecia um diamante reluzindo no breu. A esperança veio de relance, o coração já não doía de manhã com aquele aviso prévio de infarto. Passou alguns meses. Túlio foi vacinado no grupo dos idosos. Sim, ele já estava na idade de aposentadoria. Esta que não chegou, pelo contrário muitas demissões, contratações e nada passou do salário mínimo. Túlio estava começando a pensar que pagaria até as dívidas acumuladas aos poucos. Tudo estava bem. Depois de 3 meses de ter contraído a covid, de ter sido vacinado, contraiu de novo e em três dias morreu. Afinal, era apenas uma gripe qualquer.

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