A pandemia das cores: Lembrar e Esquecer II

Por Paloma C. Mamede - 24/08/2020


Imagem: Viktor Pivovarov, 1975, No, You Don't Remember

Fazia tempo que Glauco não pisava em terras brasilienses. Enquanto estava no trânsito avistou lindos ipês amarelos e viu neles o rosto de Giulia. Seu coração se contorceu, fez uma careta e o motorista do Uber, reparou pelo retrovisor, mas não disse nada, apenas achou o passageiro um sujeito muito sisudo. 

Desceu, abriu a porta, não fechou. Tudo rangeu, foi direto para o espelho, tirou a máscara. Aquele espelho que tanto o apavorava e que ao mesmo tempo seria o seu refúgio: 

— Qual a sua música favorita? —  Perguntou sussurrando.

O rosto cansado, as linhas de expressão iam tomando conta cada vez mais, franzido o cenho. Logo em seguida, pavor! Lembrou-se novamente de Giulia, queria ter indagado qual era a sua música preferida. Porém, o silêncio não deixou. Teve medo de se apegar, de conhecer de verdade, de mergulhar de vez...

Questionava apenas coisas sérias: o que ela fazia, qual sua profissão, se já tinha viajado para muitos lugares… A maior parte era o torpor, a ausência de palavras. Deveras, os dois se entendiam mesmo sem nada dizer. Contudo, sabia lá no fundo que a falta de expressão a incomodava. Um dia, ela se foi, sem avisar. Ele sabia que era justo. Também não disse nada, e tudo ficou assim.

Quando ela partiu, Glauco refletiu… Quando foi que perdera a voz? O entusiasmo? As cores e tudo mais? Relembrou um trilhão de vezes do menino risonho, levado, que já havia sido na adolescência, saia sempre com os amigos para o bar, entre gargalhadas e malícias.

Lembrou que fora logo no terceiro emprego, aquele que lhe daria tudo que sonhava, foi logo nele que tudo mudou. Começou a ficar distante, quietinho, quase na ponta da cadeira, olhando mais para o copo que para os amigos. Foi ficando cabisbaixo, eram muitas responsabilidades, afinal tinha que ser sério se quisesse ser o chefe.

Foi-se. Demitido. Doeu, pegou o avião, sumiu completamente para outro Estado, não disse nada, nem despedidas, nem agradecimentos. Nada o faria voltar, tornou-se chefe, sério, sisudo. Todavia, sempre gentil. Olhava as fotos dos amigos com frequência, Mariana, Kátia, Jorge e Bruno. 

Sabia quais músicas encantavam aqueles quatro, anos atrás, mas agora, não sabia nada… Aliás, sabia muitas intimidades dos posts do Instagram. Mariana comia todos os dias uma tapioca com suco de laranja, a primeira palavra do filhinho da Kátia tinha sido amô, Jorge estava finalmente conseguindo pintar os quadros que tanto queria, e Bruno era reservado demais para postar muita coisa, mesmo assim, sabia que ele era um médico bem sucedido.

Claro que Glauco comentava tudo e eles respondiam como se fossem inseparáveis… Tudo passou, era plástico, além dos reflexos, ele não conhecia ninguém. Voltando-se novamente ao espelho, estremeceu, no profundo de seu âmago sabia que só um ser no mundo sabia quem ele era: seu pai.

Não veio ao enterro, foi três anos atrás. Não contou a ninguém, não recebeu sentimentos, pêsames, nada. Não veio, porque teve medo que o pai revelasse mesmo lá do outro mundo que seu filho tinha mudado e que ele não o reconhecia. Teve medo.

De súbito, recordou-se da música favorita de seu pai: 

“Vai tua vida

Teu caminho é de paz e amor

A tua vida

É uma linda canção de amor

Abre os teus braços e canta”

Saiu da frente daquele rosto cansado, trancou a porta da varanda com chave, decidiu em meio àquela melodia que viveria ali.

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